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sábado, maio 17, 2003

Capítulo IV – Turbulência

O avião começou a tremer... a bandeja de comida que ele tinha esvaziado estava tremendo no suporte da minipoltrona. Ele acordou meio desavisado, mas se deu conta do que estava acontecendo. Ele sempre gostou de turbulência enquanto viajava, especialmente essas mais fortes, durante as quais todos outros passageiros ficam apavorados e ele se diverte rindo daquele bando de otários. Pra ele turbulência já era rotina, e quanto mais inesperada, mais provável era acontecer na sua vida.

Ora, ele já tinha passado por coisas ruins, tanto no campo profissional como no pessoal. Esse era o mais divertido, segundo ele. Ele sempre disse que sua vida amorosa era como uma montanha russa, e que não tinha barra de segurança. E mais, era uma viagem no escuro, nonstop. Às vezes aparecia alguém pra fazer companhia, mas dificilmente essa pessoa suportava aquele shake que era a rotina dele. Então pulavam do carro e ele ficava ali, sozinho, se sentindo mal por ter partido mais um coração.

O cara da poltrona ao lado se segurou no banco, com uma expressão de pânico disfarçado no rosto. Um bundão. Se ele fosse se abalar por qualquer coisa assim, não teria chegado aonde chegou. Não teria conseguido ir embora daquela cidadezinha assim, não teria conseguido o dinheiro que tinha, não teria conseguido não olhar para trás. Mas tudo isso era irrelevante, quando por dentro ele se sentia frio e desprotegido.

Durante as turbulências ele sempre lembrava dos momentos em que sentira aquele baque. “Eu não gosto mais de você, sejamos amigos, não me ligue mais”, “eu tenho outro, por isso pare de perder seu tempo aqui comigo e vá embora”, “lembra quando eu disse que o amava? Eu me enganei”. Lágrimas não surgiam há tempos, ele já tinha percebido que chorar não trazia seus amores de volta, e sim uma desidratação. Ele já não conseguia entender como, nas primeiras vezes, nos primeiros anos, ele fora capaz de soluçar por alguém e de mudar sua vida para continuar a vivê-la sozinho.

E agora ele estava ali, indo para onde ninguém o conhecia. Vendo apenas o sol no horizonte, se pondo dessa vez abaixo dele, entre algumas nuvens pequenas, cada vez menores. Essa cena já estava marcada na sua mente. Mais de uma vez ele pegou um avião para ir ou voltar ao seu novo grande amor, e sempre assistia a um novo pôr-do-sol ou a um novo amanhecer por outra perspectiva. Na segunda vez ele já sabia que o pôr-do-sol significava o final do amanhecer, e nada mais que isso. E dessa vez uma lágrima escorreu. O cara do lado viu e fez que não viu. Ele a limpou, fechou os olhos e dormiu.

A turbulência já passara.